“AS TUAS
GLÓRIAS VÊM DO PASSADO”
Ver o São
Paulo tão incolor, tão pálido, tão sem alma, tão sem raça, tão sem
determinação, tão desfigurado como está, me amargura profundamente.
Sou um
são-paulino exagerado e passional.
Quando o São Paulo perde por omissão os dias que se seguem são difíceis. Não engulo, rumino as derrotas, a semana se arruína. O São Paulo é como um termômetro na minha vida. Levanta e abaixa o meu astral.
Antes de
mim, muitos choraram nos anos 30, houve glória nos anos 40. Os anos 50 foram de
pouco brilho. Perdi muito nos anos 60, anos de pedra, anos de construção do
Morumbi e de afirmação da nossa grandeza. O sacrifício valeu a pena. A partir
dos anos 70 o São Paulo virou símbolo de força. Nos anos de minha infância ser
são-paulino era algo fora de moda. A partir de 1970 ser são-paulino virou moda.
Acho que
evocar nossos heróis em tempos revoltos renova a fé na crença de que jamais
voltarão os dias de agrura, de afirmação e de humilhação.
Ontem conversei por telefone com um são-paulino histórico. Estive com o filho do gênio Benedito Ruy Barbosa e em dado momento ele ligou ao pai e passou-me o aparelho celular. Falávamos, claro, sobre o São Paulo.
Com o
Benedito troquei idéias e voltamos um pouco no tempo. Em poucos minutos
remontamos à época da criação do clube, escalei o primeiro São Paulo da
história, falamos de Bauer a Paraná, de Raí a Hernanes. Foi tão bom que parece
que na semana que vem falaremos ao vivo.
O Ruy não
resiste a uma prosa são-paulina. Eu também não.
Quem sabe em razão dessa conversa, hoje já despertei com uma figura lendária assombrando a minha alma tricolor. Não farei suspense. Dizem que eu faço suspense ao escrever. Não faço. Eis o nome: Porfírio da Paz. PORFÍRIO DA PAZ, com letras maiúsculas.
Sabem quem foi Porfírio da Paz, meus iguais?
Espero
que saibam. Para os que não sabem e para os que sabem e também para os que
reverenciam esse personagem mitológico escreverei as próximas linhas. Serei
breve. Você é meu convidado, amigo leitor. Venha comigo. Com calma, com
tranqüilidade, com a fleuma e com a paciência de são-paulino.
O São
Paulo da Floresta naufragara. Era o fim. Muitos comemoraram o naufrágio, na
vida há muitas almas mesquinhas, que se divertem com as tragédias. Mas a cidade
não podia ficar sem o São Paulo. O São Paulo ostentava o nome da cidade. São
Paulo sem o São Paulo era inconcebível.
Inconformados
com a extinção do clube os então poucos são-paulinos se revoltaram. O líder da
insurreição chamava-se Porfírio da Paz. Não podia acabar assim aquele sonho.
Reuniram-se os irresignados, insuflados por Porfírio da Paz, no centro da capital, no escritório de um advogado, o dr. Silva Freire. Tudo se passou na Rua XI de Agosto, ali pertinho da sagrada Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
Na noite
do dia 16 de dezembro de 1935 tudo iria recomeçar. Aqueles homens vestindo
ternos escuros estavam escrevendo a página decisiva da epopéia do “clube da
fé”. Naquele sítio sagrado, quase no marco zero da futura grande metrópole, era
recriado o São Paulo FC. São Paulo sem sede, São Paulo sem patrimônio, São
Paulo sem glamour, São Paulo sem ostentação. No dia seguinte, instigados pela
obsessão de Porfírio da Paz, o grupo saiu atrás de jogadores, era preciso
montar um time. Aquela dúzia de pessoas era liderada pelo homem sobre o qual
escrevo.
Porfírio
era um são-paulino absolutamente apaixonado pelo sonho dourado de transformar o
São Paulo em realidade. Porfírio admirava o Paulistano, era são-paulino da
Floresta. Porfírio tinha uma são-paulinidade religiosa. Foi ele que viajou pelo
país garimpando talentos. Porfírio trouxe King, o goleiro gigante, nosso
primeiro “guarda-valas”. King foi descoberto por Porfírio da Paz no Paraná.
King, invenção de Porfírio, foi um goleiro cujo nome sobreviveria pelas noites
do tempo, foi um “guardião” que teria o nome consagrado pela história. Foi
Porfírio que trouxe a grande maioria dos jogadores que, no mês seguinte,
deveriam fazer o primeiro jogo da nossa história.
Estamos no dia 25 de janeiro. O ano? 1936.
Faz tempo, iguais?
Nosso
primeiro presidente, Manoel do Carmo Meca, e seus pares, queriam ver o São
Paulo estrear no dia do aniversário da cidade. Era questão de honra. Porfírio
entregou-se de corpo e alma ao projeto, correu o Brasil e montou o time em
tempo recorde.
Nesse dia 25 de janeiro de 1936, o São Paulo e seus bravos refundadores travariam sua primeira batalha, dentro do campo e, principalmente, fora dele.
Porfírio,
ao mesmo tempo em que acertava com os atletas, fora a todas as emissoras de
rádio, correra as redações dos jornais, a seu pedido a diretoria mandara
confeccionar panfletos para distribuir nas ruas, haviam sido afixados cartazes
nos postes e bares anunciando a estréia são-paulina para o dia 25 de janeiro,
em jogo amistoso, contra a Portuguesa Santista, no Parque Antarctica, campo do
Palmeiras. Mas, chegando ao estádio, os diretores se depararam com uma ordem de
proibição, expedida pela então Secretaria da Educação do Estado. Um funcionário
qualquer, um funcionário daqueles “Caxias”, estava intransigente e agia com
arrogância em nome do prefeito: não havia autorização para a realização do
espetáculo. Não tinha jogo e ponto final!
O
público, reduzido, se mantinha nos portões de entrada do campo e não podia
entrar, os diretores discutiam com o convicto representante da autoridade
municipal, a estréia tão sonhada, depois de tanta luta, depois da ressureição,
no dia do aniversário da cidade, parecia que estava arruinada.
Foi
quando Porfírio da Paz declarou guerra: -“onde está o prefeito”? Indagou. E o
funcionário respondeu: -“no desfile, na parada da Av. Paulista”. Porfírio voou
para a Paulista. Desvencilhou-se da multidão, empurrou pessoas, foi empurrado,
abriu caminho e chegou ao palanque das autoridades. Lá estavam, dentre outras
personalidades, a figura do dr. Armando Salles de Oliveira, o então interventor
do estado.
Porfírio
ignorou o protocolo, pendurou-se ao palanque, foi direto ao interventor e pediu
encarecidamente a ele que autorizasse a realização do jogo, afinal era o São
Paulo que queria fazer seu primeiro jogo no dia do aniversário da cidade, era
um acontecimento histórico!
O burburinho no local era grande, Porfírio teve que urrar para ser ouvido, entre hinos e discursos.
Mas
Armando Salles de Oliveira era um paulistano da cepa, um quatrocentão. O
Interventor não poderia deixar de ser simpático à idéia. Armando imediatamente
chamou o Secretário da Educação, que também estava no palanque, e ordenou-lhe
que liberasse o evento. Cantídio Campos, o secretário, era médico. Em seu
próprio receituário, Cantídio escreveu as palavras que representavam o
salvo-conduto para que o São Paulo estreasse.
Porfírio
voltou, com o coração aos saltos, com os olhos marejados e como um raio ao
estádio do parque Antarctica e esfregou o papel na fuça do funcionário chato.
Os portões se abriram, o público entrou, o tricolor faria, quase que na marra,
seu primeiro jogo, que terminou 3 x 2 em nosso favor. King, Ruy e Picareta,
Ferreira, José e Segôa, Antoninho, Gabardo, Juca (Fogueira) Carrazo e Paulinho
foram os primeiros heróis de nossa santa jornada. Eles vestiram, pela vez
primeira, a sacrossanta camisa das três cores.
No dia
seguinte o São Paulo foi inscrito na Liga Paulista e tudo começou. Daí em
diante não era mais sonho.
Mas foi duro. Duro?
Foi um martírio!
Imagine,
meu igual, um time que não era clube, imagine um time que não era clube e que
não tinha torcida; e imagine um grupo apaixonado por um time que não tinha
clube nem torcida e muito menos dinheiro para fazer frente aos já consagrados
Corinthians, Palmeiras, Portuguesa e Santos. Os adversários, gargalhavam,
duvidavam, desdenhavam. Éramos motivo de chacota.
Porfírio,
o visionário, fazia listas de doação, elaborava “livros de ouro”, visitava
autoridades, pedia recursos através da imprensa, convocava os são-paulinos para
que comparecessem aos jogos, implorava auxílio. Antológica é a passagem
histórica que nos revela um Porfírio eloqüente, um orador tomado de paixão,
fazendo um verdadeiro discurso na falecida Rádio Cruzeiro do Sul em prol da
sensibilidade do povo para que ajudasse o São Paulo. O São Paulo não podia
morrer de novo. São Paulo não podia deixar o São Paulo morrer!
Ao sair
do estúdio, já na rua, um lixeiro abordou Porfírio e deu-lhe todo o dinheiro
que tinha no bolso. “- ouvi as suas palavras. Minha família ficará sem o
necessário, mas não quero ver o São Paulo morrer”-, disse-lhe o pobre homem.
Porfírio
da Paz enfrentou o pesadelo da penúria que aterrorizava o São Paulo nas décadas
de 30 e 40. Foi Porfírio o nosso porta-voz, foi Porfírio o nosso anjo da
guarda, foi ele o nosso baluarte, era de Porfírio que ecoavam os gritos que nos
encorajavam a antever o futuro.
Acha que estou saudosista, meu igual?
Nesses
tempos de um São Paulo tão medíocre, tão descompromissado com a nossa história
de lutas será que não é para estar?
Ser são-paulino é ser muito mais do que podem imaginar os demais. Ser são-paulino é ter fé. Mas, muito mais do que ter fé, é ser guerreiro, o São Paulo não combina com a indiferença. Só nós ostentamos o nome da maior cidade e do maior estado da federação, só nós estreamos no dia em que se festeja o nascimento da terra dos bandeirantes.
Porfírio
da Paz é um verdadeiro personagem de epopéia, é um nome inesquecível, por que
será que, no Morumbi, não há uma placa, um busto, uma estátua de Porfírio?
Nosso saudoso herói esteve à frente de todas as lutas. Porfírio era militar. De cabo, chegou a general. Porfírio era do bem. Porfírio morreu pobre, encantado com o crescimento do clube que ajudou a fundar.
Em certa
ocasião, depois de ter entregue ao São Paulo tudo que possuía, depois de
angariar dos são-paulinos tudo que poderiam dar, depois de tantas batalhas,
Porfírio recebeu em casa um Oficial de Justiça. O homem vinha notificá-lo de
que perdera a casa onde morava, em razão da falta de pagamento do
financiamento.
A família chorava na sala.
Porfírio
os estimulou. Dinheiro ia e vinha. O São Paulo era para sempre.
Foi nesse dia que Porfírio, ao abandonar a casa perdida, ao lado de mulher e filhos e com os olhos marejados de lágrimas cantarolou: “- Salve o tricolor Paulista, amado clube brasileiro, tu és forte tu és grande, dentre os grandes é o primeiro”- Foi nesse dia que ele compôs o hino do São Paulo FC.
Querem
mais, meus iguais?
Não. Não é preciso mais. Será que alguém poderia contar essa história aos nossos atuais dirigentes e jogadores?
Se alguém puder, que o faça.
Vibrações de fé a todos.
Saudações tricolores.
Escrito por:
Antonio
Carlos Sandoval Catta-Preta, advogado e são-paulino.
antoniocattapreta@yahoo.com.br
catta_preta on twitter
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